Relato: Marcelo Salazar

Comecei a participar do NAPRA, quando era um projeto de alunos da Universidade São Francisco em Bragança Paulista, em 1999. Não lembro se Hamilton* me convidou a participar ou se eu me convidei. O fato é que podia fazer quase qualquer coisa para “ganhar” um mês na “Floresta Amazônica”. O que movia o grupo na época era um misto de busca de aventuras, do exótico e espirito voluntarista de querer ajudar as pessoas – hoje posso confessar que foi mais para marcar a Amazônia no meu mapa de lugares “explorados”. Tínhamos uma sensação de que éramos os salvadores do sul levando conhecimento e ajuda para uma população abandonada no meio da floresta, que qualquer coisa que levássemos seria bom. Como muitos que chegam em comunidades na Amazônia pela primeira vez, o que me incomodava mais era o lixo nas comunidades. Logo comecei um trabalho para “ajudar” a comunidade a resolver o problema do lixo de forma “participativa” e “coletiva”. Claro que este problema não foi resolvido. Avaliei mais tarde que as pessoas participavam das reuniões mais por respeito ou curiosidade do que para resolver o problema de fato, e eu não tinha bagagem nem no tema “lixo” e nem era um grande facilitador. Com o tempo percebemos que a questão do lixo não era uma prioridade da comunidade e que estava muito melhor equacionada lá do que nas cidades onde vivíamos em São Paulo. A comunidade até topava uma conversa ou outra sobre lixo, experimentos sobre horta comunitária ou ouvir sobre prevenção em saúde, organização comunitária, educação alternativa, mas o que queriam mesmo eram as consultas médicas e odontológicas que a equipe de saúde do NAPRA oferecia e que na época eram tão raras na região. A troca era clara, o NAPRA levava a “saúde” e a comunidade aceitava receber aquele grupo de jovens malucos que pensavam ter a solução para os “problemas” que identificavam no local e até se divertiam com isso.

Como muitas outras experiências de trabalho com população de culturas muito diferentes das nossas, tendo que lidar com questões e ambientes muito diferentes dos nossos, depois de algum tempo de trabalho conjunto e muitas questões não compreendidas, algumas pessoas do grupo caíam na real de que há um equilíbrio nessas comunidades, que apesar da falta de letras há uma sabedoria que permitiu a essas populações viver por mais de 100 anos na mesma região sem destruí-la, ou seja, um período maior do que a idade da maioria das cidades das quais as pessoas do nosso grupo vinham. Ao passar dos anos percebi-me ignorante na realidade dos extrativistas, e isto foi perturbador, a ponto de quase não fazer sentido todo aquele trabalho. Passei a me perguntar: Que tipo de ajuda estávamos de fato promovendo? O que a comunidade queria (e precisava de fato) que poderíamos oferecer com um grupo itinerante de estudantes e alguns profissionais recém-formados? Estávamos mais ajudando ou atrapalhando? Como ser melhor observador, melhor ouvinte, como ler as demandas das comunidades e transformá-las em ação em tão curto espaço de tempo e com um grupo que muda a cada ano? Em que tipo de questões podemos fazer alguma diferença para garantia dos direitos e promoção do “desenvolvimento” dessas populações com um grupo com as características do NAPRA? (Muitas destas questões me perseguem até hoje, 16 anos depois desse 1º contato “no chão” com a Amazônia e seus povos).

Não tenho dúvidas de que meus 10 anos de experiência no NAPRA foram profundamente transformadores. Nenhum outro tipo de formação teria me preparado com a mesma efetividade e profundidade para o que vim a fazer depois aqui nas Reservas Extrativistas da Terra do Meio, no estado do Pará, primeiro como consultor do IBAMA e depois contratado pelo Instituto Socioambiental (ISA). Lembrando a história, vejo que um dos maiores desafios do NAPRA (e de várias organizações que trabalham na Amazônia) é lidar com o efeito “feitiço do tempo”, como naquele filme em que Bill Murray interpreta o jornalista Phill Morris vivendo sempre o mesmo dia repetidas vezes, “o dia da Marmota”. Todos os anos aparece um monte de jovens como um dia fui eu: entusiasmados, cheios de energia e achando que vão salvar a Amazônia e seus povos e depois de 2 – 3 anos de trabalho duro (e muitas cabeçadas), quando estão amadurecendo, acabam seguindo outros caminhos… e começa tudo de novo: novos ciclos de formação, mesmos preconceitos sobre povos da floresta, mesmas ideias de soluções rápidas, de projetos de horta comunitária, de que investir só em prevenção em saúde resolverá todos os problemas da comunidade sem precisar de ações curativas, educação diferenciada sem entender como ocorre a educação formal, de como trabalhar com o lixo nas comunidades, etc. Mas é assim, desta maneira meio doida, que o NAPRA cumpre um papel importante para a região do Rio Madeira onde atua e dá um pontapé importante na vida de algumas pessoas para mergulhar na realidade Amazônica: pra começar, sem o NAPRA, eu e tantos outros não estaríamos nesta missão de trabalhar pelos povos da Floresta, de trabalhar em algo que tenha sentido para o momento atual que o mundo atravessa.

O NAPRA teve papel muito importante, embora pontual na maioria das vezes, em diversos dos processos que estão rodando na região do Rio Madeira onde atua e até em âmbito nacional. Alguns exemplos são: (1) Apoio do NAPRA na elaboração dos Planos de Manejo da Resex do Lago do Cuniã, Estação Ecológica Cuniã e Flona Jacundá, e formação dos conselhos consultivos e deliberativo, contribuindo até para cunhar a própria gestão integrada Cuniã-Jacundá; (2) Aproximação do Programa de Saúde da Família para a Região em 2000; (3) Processamento de castanha e conceito de miniusinas da floresta que resultou em vendas diferenciadas de castanha e de outros produtos**; (4) Práticas de telemedicina, inovadoras na época em que foram realizadas; (5) Contribuição ao longo dos anos com a valorização dos povos das florestas e rios da região, divulgando os problemas que enfrentam e promovendo a beleza da cultura que manifestam. Aprendemos no NAPRA a admirar e respeitar os povos da floresta pelo que são, por sua história e possibilidade de um futuro melhor que nos apresentam com sua forma muito mais sábia do que “nós”, filhos das cidades ou da monocultura, de se relacionar com as florestas e rios.

Termino este relato solicitado pelo grupo, que de forma muito competente está tocando o NAPRA hoje, dizendo que sou profundamente grato a tudo que o NAPRA me proporcionou – e continua proporcionando. Acredito que o modelo do NAPRA é incrível e deveria ser mais copiado pelo Brasil – uma ONG com quase 100% de voluntários há mais de 20 anos rodando, sensibilizando jovens lideranças para o trabalho com a diversidade humana, com a diversidade socioambiental, com as questões amazônicas e contribuindo, mesmo que de forma singela, com processos e lutas importantes para as comunidades onde atua.


*Dr. Hamilton Modesto Rigato, Cirurgião Dentista, doutor em clinica médica pela UNICAMP, coordenou o NAPRA por mais de 10 anos.

**Experiência que tive a oportunidade de aprofundar depois na região da Terra do Meio, junto com outras pessoas que passaram também pelo NAPRA. De certa forma estamos devolvendo o aprendizado para Rondônia através de pequenos intercâmbios e conversas intermináveis com alguns dos atuais membros do NAPRA.

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