Vivemos um tempo de medo. Mas é relevante lembrar que não é possível experimentar um afeto isolado ou puro; eles sempre estão enredados em constelações afetivas. À vista disso, o medo de que algo ruim aconteça, normalmente está acompanhado pela esperança de que este algo não aconteça.

Para o grande filósofo Spinoza (1632-1637), embora tenham qualidades distintas, o medo e a esperança nos mantém em um lugar de heteronomia e servidão. O educador Paulo Freire (1921-1997) distingue dois tipos de esperança: a primeira ligada ao verbo esperar, possui um caráter passivo, fatalista e supersticioso e se assemelha a ideia de Spinoza. A segunda, deriva de esperançar e possui um caráter ativo na construção do futuro almejado.
O medo da morte, da perda de controle, das mudanças no dia-a-dia, está ligado a um futuro incerto e, mais que isso, a um presente que tolhe nosso movimento e a possibilidade de encontros, de união de conatus; que limita o toque, o abraço e impede o coletivo à medida que nos nega o público, o direito à cidade.

Biologicamente, o medo organiza nosso corpo para luta e fuga, secretando adrenalina, aumentando a ansiedade e gerando um estado de vigília. Parece que o Coronavírus vem nos permitindo lembrar que também somos um corpo. Não um corpo controlado por uma racionalidade dominante, mas uma unidade corpo-mente que afeta e é afetada, busca e produz encontros, ideias, sentimentos, paixões. Um modo de derivação da natureza que embora busque sempre um estado de maior perfeição, também possui limitações, as quais se intensificam quanto maior for o contexto de opressão vivenciado.

O Covid-19 expõe diversas fragilidades e deslizes da humanidade: dentre tantos “tapas na cara” (que talvez possam ser simbolizados pelas máscaras em nossas fuças), o vírus nos mostra que essa mente suprema e toda técnica que criamos, embora hoje cumpram um papel de extensão de nossos corpos, para além de nossas casas-gaiolas, não nos tornam indestrutíveis ou imunes a ele. Além disso, nos manteremos na ilusão se não questionarmos o rastro sangrento que todo esse desenvolvimento tecnológico, deixou na história.

Mas será que esse medo e sofrimento, são democráticos? Será que todos experienciamos esses afetos na mesma intensidade e qualidade? A resposta seria sim, se não fossem também mediados pelo contexto que vivemos e a qualidade dos encontros que este gera. Com isso, não pretendo deslegitimar sentimentos que, talvez pela primeira vez na história, sejam compartilhados pela espécie humana, mas demarcar as diferenças que se configuram a partir das desigualdades sociais. Devemos lembrar a existência de populações que, desde o início do processo de colonização, vivenciam um estado constante de guerra, atravessados por uma constelação de afetos nocivos que são reapresentados cotidianamente.

Em meio a pandemia, os povos da floresta amazônica, além de lidarem com o medo da contaminação pelo Coronavírus e o descaso do (des)governo perante a situação, continuam lutando pelo seu direito natural de uma existência digna e livre. Enxurradas de notícias revelam violentos ataques como assassinatos de lideranças indígenas e o grande aumento de atividades criminosas em territórios tradicionais por grileiros, madeireiros e garimpeiros, que seguem a todo vapor destruindo a floresta e aumentando o risco de contágio.

Além disso, o medo da fome. O contexto de pobreza e exclusão que os povos tradicionais estão inseridos, muitas vezes, impede que sejam autossuficientes no cultivo de seus alimentos, gerando uma relação de dependência com as cidades. Aqueles que possuem o extrativismo como fonte de renda, necessitam articular a venda dos produtos com atravessadores ou em centros urbanos, expondo-se ao risco de contaminação para garantir o suprimento de necessidades básicas. Ademais, o Covid-19 chega no momento do inverno amazônico, período marcado por chuvas intensas, que já representa uma baixa econômica, principalmente em locais que tem o turismo como principal fonte de renda.

Há séculos, os povos tradicionais lutam para preservar suas formas de organização pautadas na ética do Bem-Viver e visões de um mundo de pessoas coletivas, que cantam, dançam, sonham e compreendem a integralidade entre existência humana e natureza. Talvez esses povos possam ajudar a guiar o futuro em uma direção diferente daquela que, ao que tudo indica, estamos fadados. Parece prudente resgatarmos referências e sentidos daqueles que, há tempos, resistem às ameaças iminentes de destruição, causadas por um modelo hegemônico de sociedade mercadológica.

Esperançar um futuro digno de ser vivido, vai além da busca por um conforto pautado em práticas individualistas e de consumo; requer ações que se direcionam ao comum, o sentimento de que minha potência de vida só é possível através do outro. Para Spinoza, o comum não deve ser confundido com caridade ou solidariedade, pois ele se afirma no ato de reconhecer que só poderei garantir minha liberdade, imaginação, felicidade e saúde se todos tiverem esses direitos garantidos. Trata de compreender o direito humano à potência de agir no mundo, de auto-organizaç

São Paulo, 01/05/2020

Beatriz Marques Sanchez
Mestranda do programa de Psicologia Social da PUC-SP no Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão Social (NEXIN) e integrante voluntária do NAPRA.
E-mail: marquesbia1@yahoo.com.br